Como introdução, a comunicação pretende apresentar uma visão geral do desenvolvimento da temática afro-brasileira na literatura do Brasil em relação a textos etnológicos e antropológicos. A discussão, travada em escala global durante as últimas décadas acerca da "writing culture" chamou a atenção tanto para o caráter narrativo das ciências históricas, sociais e etnológicas como para as influências textuais dos discursos científicos para as letras. Surgiram, no campo da literatura, novos questionamentos sobre a autoridade e o foco narrativo dos autores de textos literários e científicos.
O trabalho tematiza sobretudo a religiosidade afro-brasileira (candomblé etc.) sob aspectos literários e etnológicos, descrevendo e comparando as atitudes de três autores a este respeito, nomeadamente a do romancista baiano Jorge Amado (1912-2001), que pretendeu se integrar, ele próprio, nas estruturas desta religião, divulgando as suas mensagens; do etnólogo, viajante e antropólogo francês Pierre Verger (1902-1996), que se aproximou deste fenômeno brasileiro numa busca autodidática e científica da religiosidade africana, e do autor-viajante alemão Hubert Fichte (1935-1986), que tanto através de suas viagens como em sua literatura (difícil de classificar, mas caracterizada como "antropologia poética") se deixou estimular pelas religiões e culturas afro-americanas. Inserindo estes três autores na história dos discursos científicos e literários sobre o Brasil africano, o trabalho analisa a contribuição específica de cada um, dando especial relevo à relação intertextual entre Jorge Amado, Hubert Fichte e Pierre Verger. Na comparação entre o autor brasileiro e o autor alemão tornam-se distintivos, diante do próprio e do alheio, os critérios de alteridade e de identidade. Todos os três autores caracterizam-se pelos condicionamentos resultantes da transposição e fixação da tradição oral através do meio da escrita.
O objetivo deste trabalho é, assim, investigar em textos de Pierre Verger, Hubert Fichte e Jorge Amado os elos que ligam e separam literatura, etnologia e religião no campo de tensão Europa-Brasil-África. Os textos a serem analisados aqui são originários de um contexto etnológico-religioso-literário no qual a Europa, a África e a América se juntam, se chocam, se ligam e se fundem. Por um lado, unem-se aqui vozes e textos de diferentes origens; por outro lado, esta heterogeneidade é representada e encenada como forma literária híbrida pelos próprios escritores. Textos e imagens referentes a religiões afro-brasileiras transmitidas oralmente possuem em regra um estatuto de narração, já que ficam a dever à observação de fora, ao registro oral e à documentação dos fenômenos religiosos. As questões que se colocam nesta comunicação são, por um lado, se na literatura o campo propício à heterogeneidade e à alteridade é mais amplo do que na ciência e, por outro lado, se na literatura como veículo de comunicação, o estranho é menos reduzido, polido, denunciado ou discriminado em sua heterogeneidade e alteridade do que na ciência.
Chega-se à conclusão de que uma redefinição cosmopolita da cultura afro-brasileira necessita de uma ruptura das formas e retóricas textuais fechadas, deixando emergir uma pluralidade e multiplicidade de visões e representações semânticas e simbólicas do contexto afro-brasileiro.
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