Brasil
O percurso por uma rede de narradores de diferentes épocas encontra um traço de animalidade no olhar e na escritura-flâneur, desde que Restif de la Bretonne propôs, no século XVIII, a associação entre o repórter/narrador e uma ave noturna. Esse rastro orienta a constituição da categoria do narrador-coruja, que coloca em prática um método inumano de olhar as zonas de sombra das cidades. Aqui chamada narrativas do escuro, esta cartografia percorre diversas textualidades interligadas pelo desejo de ver o que está por baixo do cotidiano − de Bretonne e Mercier, passando por Poe, Baudelaire, João do Rio e remetendo a Clarice Lispector. De tempos em tempos, a narrativa coruja desaparece para reaparecer em cada cidade onde haja um andarilho obstinado a ultrapassar a mancha de invisibilidade no olhar humano. As multidões caminham desatentas, ofuscadas pela proliferação de signos e propagandas, marcham para o porvir sem olhar para trás. A coruja não; ela retém o tempo para pressentir os desaparecimentos das singularidades e entrever o que a história do presente diz de mais clandestino, pois como ensina Benjamin (1994b, p. 231), “pensar não inclui apenas o movimento de ideias, mas também sua imobilização”. O passeio pelos primeiros escritores-repórteres permite ensejar que o coruja-flâneur inaugura não apenas a si próprio, mas também esse modo de narrativa calcado em uma poética do olhar para os escombros. A deambulação física o caracteriza, mas não determina a narrativa, assim como não determina a viagem, o deslocamento interior. Antes, a pulsão de ver o desconhecido desperta outras potências obscurecidas, reintegrando-as à percepção dos movimentos urbanos e impulsionando a narrativa a caminhar, ouvir, cheirar, sentir. No voo noturno de olhar pivotante, a literatura anuncia as sobrevivências que não cessam de desaparecer diante do contemporâneo.
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